Ex-escoteiros relatam terem sido vítimas de abuso sexual por chefe de grupo em Fontoura Xavier
Um grupo de ex-escoteiros se uniu para revelar um segredo que não conseguiam mais guardar sozinhos. Eles contam ter sofrido abuso sexual enquanto integravam o Grupo Escoteiro Guamirim, de Fontoura Xavier, no norte do Estado. Há 18 depoimentos na Polícia Civil com detalhes do que teria ocorrido ao longo de anos no Guamirim, que encerrou as atividades em 2017.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) procurou esses jovens para ouvir o que teria acontecido durante atividades de escotismo e no convívio social com o suspeito de cometer os abusos: André Carvalho Lacerda, o chefe André, 52 anos, o homem que fundou o Guamirim em 2007 e que chegou a comandar mais de 80 escoteiros na cidade, conforme ex-integrantes.
Ao longo de quatro meses de apuração, o GDI tambémbuscou a história de André no escotismo: ele tem 35 anos de atuação junto ao Movimento de Escoteiros do Rio Grande do Sul. Ingressou com 13 anos no Grupo Escoteiro Japão, em Porto Alegre, unidade que presidiu anos depois.
Os depoimentos sobre supostos abusos começaram a ser coletados em dezembro de 2018, na Delegacia Regional de Soledade, depois de um registro feito por um ex-escoteiro contra André por estupro de vulnerável. Em janeiro, a Justiça autorizou que a polícia fizesse buscas na casa do suspeito, que é bancário e atualmente mora na Região Metropolitana. Foram apreendidos telefones celulares, pendrives, tablets, notebooks, DVDs, videogame, HDs externos, MP3 e um revólver. O conteúdo dos equipamentos está sob análise do Instituto-Geral de Perícias (IGP).
Em relatos permeados de detalhes e de dor, ex-escoteiros descreveram ao GDI a estratégia que André usaria para envolvê-los: alegava ter câncer e precisar do sêmen para ser curado.
— Ele passava a mão. Depois, ele pedia que a gente desse nosso espermatozoide, que tinha o poder de curar ele — diz um dos jovens.
— Ele se curava com sêmen, ele falava que era a cura dele — confirma outro entrevistado.
Todos os relatos convergem para a mesma forma de agir: o chefe dos escoteiros teria conquistado a amizade e a confiança de crianças, adolescentes e de suas famílias para criar o grupo. Ex-integrantes do Guamirim falam que André se tornou referência, passando ensinamentos, ajudando em temas e trabalhos escolares e dando conselhos. Ganhou aura de figura paterna. Depois, conhecendo fragilidades de cada um — como conflitos familiares —, usaria isso para mantê-los em silêncio sobre os supostos abusos.
Falando ao GDI, ao mergulharem no passado, os ex-escoteiros engasgam, suas vozes tremem e o choro insiste em brotar em alguns trechos das histórias. Muitos entraram no grupo quando tinham 10, 11, 12 anos. Hoje, esses ex-integrantes do Guamirim são adultos, universitários ou já formados. Nunca antes haviam feito as revelações. Não haviam contado uns para os outros, nem para as famílias. Os fatos que teriam ocorrido em acampamentos, atividades do grupo e em residências do chefe André — em Fontoura Xavier e na Capital — ficaram escondidos por anos, protegidos por medo e pela dúvida sobre o real significado daqueles atos.
A certeza de que teriam sofrido abuso sexual começou a surgir em meados de 2016, quando um dos ex-escoteiros, na faculdade, passou a ter contato com o tema de abuso de menores em conversas com colegas de curso.
— Conversando sobre como era abordado o assunto de abusos, quais eram os sintomas, eu fui refletindo. Soube que tinha o disque 100 (contato do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para denúncias). Pensei inúmeras vezes em ligar. Mas decidi falar com meus amigos antes — conta o jovem de 25 anos.
Ele contatou um, dois, três amigos. Os mais próximos. E as histórias foram se repetindo, cada vez com mais detalhes surpreendentes:
— Fiquei apavorado com tudo que eles relatavam. Vi que era mais sério do que eu imaginava.
Os amigos tentaram criar um grupo de WhatsApppara facilitar os relatos. Inicialmente, não deu certo. Muitos relutavam em falar, faziam piadas em cima das experiências que haviam tido, tentando desviar o foco. Mas o assunto não foi esquecido. O ex-escoteiro de 25 anos procurou ajuda especializada. Fez tratamento psicológico por um ano.
— Eu não consegui contar para a psicóloga. Mesmo fazendo tratamento, eu acreditava que não era por causa daquilo (dos abusos) que eu tinha problemas, traumas. Eu não contei para a psicóloga, mas o tratamento serviu para eu ter certeza do que ocorrera comigo — desabafa ele.
No ano passado, a corrente entre os amigos aumentou. O grupo de WhatsApp se fortaleceu e hoje tem 20 integrantes. Um dos jovens, de 23 anos, sustenta ter sido abusado por anos, até sair do grupo. Ele ingressou no Guamirim aos 11 anos:
— Foi contínuo. Desde que entrei. Mas meu primeiro ato sexual com ele foi entre 13 e 14 anos. Ele passava a mão, dizia que o corpo humano se conectava, passava a mão na região genital, dizia que eu tinha uma coisa em mim que podia ajudar ele a viver. Ele nos deixava sem saída. Era uma pessoa por quem a gente tinha admiração, e a gente não queria ver ele mal. Meio contrariados, mas nós fazíamos (os atos supostamente solicitados pelo suspeito), porque achávamos que estávamos ajudando ele.
Sobre por que não revelaram nada antes, os jovens argumentam:
— Nós, crianças e adolescentes, não tínhamos noção de nada — diz um ex-integrante do Guamirim.
— Ele usava do misticismo para nos ludibriar, dizia que tinha poder, que tinha capacidade de ver o que não víamos. Isso nos assustava, a gente pensava: “Poxa, pode ser verdade, ele pode fazer mal para mim e para minha família!”. Isso nos prendeu a ele, nos deixou reféns — relata o jovem de 23 anos.
A advogada que representa o grupo e que acompanhou todos os depoimentos, Claridê Chitolina Taffarel, explica:
— Ele tinha conduta ilibada, gerente de banco, participava de todas ações sociais da cidade, frequentava as casas das famílias, conhecia as rotinas, as fraquezas de cada menino, para usar depois. Ele fundou o grupo de escoteiros na cidade. Conquistou a confiança de todos. Dizia que tinha uma espécie de poder superior. Envolvia os meninos, comprava os mais humildes com presentes, com passeios em shoppings. Tinha o videogame mais moderno em casa. E dizia que, se falassem algo, alguma coisa poderia acontecer. Ameaçava. O estrago na vida dos meninos foi grande. Alguns superaram, outros não.
No grupo há jovens em tratamento para depressão e até casos de tentativa de suicídio. Há quem se sinta culpado por ser “bonito”, como se isso tivesse motivado os abusos. Há casos de jovens que alegam ter dificuldades no relacionamento sexual por lembrarem dos atos que teriam sofrido. Durante os relatos à polícia, segundo a advogada, houve situações de depoimentos serem interrompidos por conta de crises de choros dos ex-escoteiros.
Conforme Claridê, o inquérito segue tramitando e mais depoimentos e provas estão sendo coletados sob o comando do delegado Marcos Veloso, que não revela detalhes porque o caso está sob sigilo. O promotor de Justiça que atua no caso em Soledade, Bill Jerônimo Scherer, acompanha o andamento das investigações e destaca:
— Trata-se de situação que, confirmada, é gravíssima, pois revela os abusos suportados por adolescentes que, aos olhos de seus responsáveis e da comunidade, estariam em situação de segurança, pois ninguém espera que chefe de escoteiros vá se valer dessa autoridade e da confiança das vítimas e dos pais destas para abusá-las sexualmente.
Mas, afinal, tantos anos depois, por que jovens moradores de uma cidade de 11 mil habitantes decidiram expor um assunto íntimo e constrangedor? O que os motiva, contam, é a busca por justiça e a vontade de alertar pais, professores e educadores:
— Quero ter minha consciência tranquila de que fiz o que deveria ter feito, de tentar evitar que outras pessoas passem por isso. Espero que a justiça seja feita, não posso acreditar que uma pessoa assim vai passar impune — diz um dos jovens.
— O mais importante é os pais de crianças e adolescentes observarem quando algo foge do comum. E não só com meninas. Também os meninos merecem atenção. Muitas vezes, se pensa que o abuso acontece só com meninas, com agressores heterossexuais. Acho que devem ser melhor observados os meninos, pois eles têm tendência a ficarem quietos e não contarem por vergonha, por medo do julgamento das pessoas. Esse julgamento foi fundamental para o silêncio desse tempo todo — relata outro.
O jovem que deflagrou o rompimento deste silêncio resume como vê a ação do suspeito:
— Ele manipulou uma cidade!
Em 2010, o então chefe dos escoteiros foi agraciado com título de Cidadão Fontourense.
— Esses jovens, ao revelarem o que passaram, confiaram nas instituições estatais que, agora, precisam dar uma resposta justa — pondera Claridê.
Denuncie casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes para a Polícia Civil pelo telefone 0800-642-6400. O anonimato é garantido.
Contraponto
O que diz Vitor Guazzelli Peruchin, advogado que acompanhou o depoimento de André Carvalho Lacerda à Polícia Civil:
“O senhor André disse que não vai se manifestar na reportagem, pois todos os esclarecimentos já foram prestados à autoridade policial”.
Fonte: GauchaZH
Foto:Reprodução/Facebook